Jaime Cortesão desenhou

 


Afonso Lopes Vieira, desenhado por Jaime Cortesão. Publicado no n.º 4 da 1ª série da revista Águia, de 15 de Janeiro de 1911.

Lopes Vieira: Auto da Sebenta


Porque amanhã é Domingo, aqui fica o que nem sei como inventei hoje tempo para conseguir escrever, moído de prazos, um intervalo no cenho carregado que a profissão traz, fora o fastio.


Razões da vida levaram-me há anos a dividir-me entre Lisboa e São Pedro de Moel e ali viver em casa arrendada, contígua à Casa Nau, a onde viveu o poeta Afonso Lopes Vieira [1878-1946].

Local discreto permitiu-me um tempo de recolhimento, entre a paz do mar por vezes furibundo, oportunidade para flanar pelas arribas e a possibilidade de trabalhar e ler fora dos limites apertados da voragem lisboeta em que o relógio acelera e o espírito se fadiga mesmo quase sem nada fazer.



E daí, ao estar naquele local privilegiado, a curiosidade, primeiro, logo a vontade de conhecer melhor a sua obra e, como seu efeito, que perdurou, o ir adquirindo e lendo quanto ele escreveu.

Esta sexta-feira chegou-me, vindo de alfarrabista amigo, o seu pueril Auto da Sebenta, farsa em dois quadros, com «prólogo fora do pano», representada na noite de 29 de Abril de 1899. Aqui fica, por isso, este apontamento, que levo a um blog que lhe dedico e leva como nome o seu nome [e está aqui]. Faltava-me entre tanto que já juntei.

Lopes Vieira estudou Direito em Coimbra e terminou a sua frequência com uns sofríveis dez valores. O que foi a boémia e a activa recusa de estudar deixou disso traço em um dos seus bem humorados escritos, os versos que no ano seguinte publicaria sob o título O Meu Adeus, comovida lembrança de despedida e onde ficou este apontamento biográfico [respeito-lhe a grafia]:

«No velho casarão de monástico ar

Eu seus anos gastei da minha vida inquieta;

E, se aprumado entrei, sahi a corcovar;

Fiquei um máo jurista e muito menos poeta!»

Ganhou carta de advogado, o que o habilitou a uma única intervenção no foro, para defender Hipólito Raposo quando este foi julgado no Tribunal Militar de Santa Clara, creio que pelo envolvimento na conspiração monárquica de 1919 e ali condenado a uma pena de prisão no Forte de São Julião da Barra [como já deixei escrito aqui e aqui também, de modo mais encurtado].



Voltando ao Auto de Sebenta, o mesmo foi escrito com ironia dizendo-se «homenagem àquela instituição coimbrã que vós conheceis, que é já quasi uma instituição nacional, e que se chama – a Sebenta».

O tempo da representação deu-lhe sentido e a propósito, pois a peça foi estreada no âmbito da comemoração do “Centenário da Sebenta”, feito que deu brado e meteu carro alegórico e cortejo pelas ruas da cidade do Mondego e postais anedóticos como o que aqui trago, grato pelo que escreveu José Norton no seu blog “pena do que não escrevi” [ver aqui], onde o encontrei e que, com a devida vénia, me permito citar.



Instado a indagar o origem do termo “sebenta”, o poeta Trindade Coelho [1861-1908], que daria em Procurador Régio nos tribunais e até juiz, e escreveu umas monografias jurídicas, entre as quais um estudo sobre recursos penais [ver aqui], para além de obra literária diversa [ver aqui], lançaria problematizando-a, a grave essência problemática da questão: «tratava-se de saber se a sebenta vem do cebo (sebo) ou se o cebo é que vem da sebenta».

Regressando ao Auto, este surpreende, no seu primeiro “quadro”, um pobre estudante coimbrão, aterrado ante a iminência de ir ao acto do seu exame e que pelas três da madrugada clama a sua desolação:

«Três horas! Isto não finda! Inda há tanto que estudar! Faltam dois restos ainda, vou no meio da lição. E falta-me consultar o Código do Japão. Isto é ciência aos potes! Falta-me ver a lei dórica, mais a lei dos hotentotes e o Portugaliae Monumenta Historica.».

E eis que no desfiar da narrativa, convocado pela aflição, ressurge, em espectro, El-Rei D. Dinis, o criador da Universidade e o diálogo passa do respeitoso ao mais brejeiro. E diz o aflito estudante, Euzébio de sua graça, na peça representado por Alberto Costa, «estudante do 4º ano de Direito», afinal o lendário Pad Zé [ver aqui e também aqui e aqui], a propósito de um poeta local, revela:

«Ouvi não dizer não sei quando, que ia no artigo mil, um que estava versejando sobre o código civil».

Ao que o Rei lhe responde:

«Que empresa nova e bizarra! Boa ideia! Bem achado! Fazem-se leis à guitarra, cantam-se artigos ao fado».

O que há de irónico neste excerto é que está aqui, em discreto apontamento, quanto vem retratado no capítulo “O Código Civil, poema lírico”, no livro de memórias de Vicente Pinheiro Lobo Machado de Melo e Almada, 2º Visconde de Pindela, irmão do 1º Conde de Arnoso, como já referi aqui, como tendo sido episódio, ocorrido no quarto do poeta Lopes Vieira, na sua casa aos Palácios Confusos, «onde não houve loucura que não sonhassemos e que não tivesse a sua immediata realisação».

Tratou-se da récita, em verso, a despropósito do Código Civil de 1867 que tivera, a sério, mão literária de Alexandre Herculano, por sobre a prosa jurídica do Visconde de Seabra, seu autor, mas vinha agora, transfigurado, em poética burlesca, pela verve exaltada de Lopes Vieira.

E assim tornados agora risonhos dois de muitos dos seus artigos, ei-los, apetecíveis, porque onde estava:
«Artigo 1º
Só o homem é susceptível de direitos e obrigações. Nisto consiste a sua capacidade jurídica, ou a sua personalidade».

«Artigo 8º
A lei civil não tem carácter retroactivo. »,

conta Pindela, «o poeta [Vieira], pedindo discretamente silencio, ante o grémio dos seus ouvintes, em voz grave e pausada, lia-nos os seguintes artigos:

«Artigo 1º
Isto parece-me incrível
Isto faz-me comichões!
Só o homem é susceptível
De direitos e obrigações.»

«Artigo 8º
Que triste vida na choça
Que vida sem lenitivo
Ai! a lei civil não tem
Effeito retroactivo.»

Ficamos por aqui. Um Bom Domingo e boas leituras, até porque há mais vida para além do Direito e pode haver Direito com mais vida do que muitos, burocratas do mesmo, supõem, embalsamado o seu espírito na hermenêutica positivista a que o sujeitam.

Afonso por Cândido Costa Pinto

 


Graças à gentileza do Emílio Ricon Peres, este desenho à pena de Afonso Lopes Vieira feito por Cândido Costa Pinto [1911-1976], expoente que viria a ser do surrealismo e que algumas capas desenhou para a Colecção Vampiro, a série de livros policiais editados pela editora "Livros do Brasil".

A constipação patriótica

 


Aqui fica, assinado pelo pseudónimo Titus, afinal a prosa de Joaquim Manso [1878-1956], director que foi do "Diário de Lisboa" durante 35 anos. Com ironia lembra o episódio que assolou a vida de Afonso Lopes Vieira quando da escrita da sua pagela de homenagem ao Soldado Desconhecido.


Lopes Vieira por Amarelhe

 


A gentileza do Gonçalo Pereira da Rosa trouxe-me este desenho de Amarelhe retratando, a traço grosso, Afonso Lopes Vieira.

Américo da Silva Amarelhe [1892-1946] um dos mais famosos caricaturistas da época, ilustrador sobretudo nos meios teatrais, tem a sua obra dispersa e vive mais em esquecimento do que em reconhecimento.

O seu traço fino e preciso não se exprime aqui neste tosco que capta do retratado o lado amargo e endurecido que também se pressente a quem ler por dentre a sua diáfana poesia, o desconsolo da solidão.

Afonso Lopes Vieira na juventude

 


Frequentemente é persistência, outras mero acaso e assim sucedeu: esforçava-me este fim de tarde, por arrumar livros, trazendo-os para outras estantes, separando os duplicados, os de edições de pior qualidade, em pior estado. No caso, os livros de e sobre Manuel Laranjeira, entre eles a fotobiografia da autoria de Orlando da Silva, publicado em 1992 pela Gráfica da Vergada. E nela, eis de súbito, a ladear a transcrição de uma carta em que o autor do "Pessimismo Nacional" agradecia os livros recebidos, a foto do autor: Afonso Lopes Vieira, na juventude.

Trouxe-a aqui, retocada ligeiramente. Talvez nela se reconheça a fisionomia que se nos tornou familiar do poeta de "País Lilás, Desterro Azul".

Por esta altura, data que não consigo reconstituir, pois nem encontro informação quanto à origem da fotografia, professaria ele o anarquismo romântico que se evidencia em "Marques, História de um Desterrado": uma certa altanaria na pose, a farta cabeleira solta, o olhar profundo, ainda não fariam pressentir o rebuscado cuidado e a delicadeza filigrânica da sua escrita.

História de um Perseguido

 


Tinha-o, comprado em Leiria, na "Letras & Livros", na segunda edição, organizada e comentada por Cristina Nobre e Eduardo Cintra Torres. Edição essa em que a ortografia foi actualizada e a pontuação adaptada «a normas consensuais contemporâneas», mas em que os estudos dos organizadores ajudaram a ler e a entendê-la, supondo-a na sua original grafia.

Ansiava, porém,  poder encontrar a primeira edição, não por ter o fetiche das primícias, sim porquanto, há em mim um estranho sentir, o de que, em relação a certas obras, tomá-las na modéstia do papel e na incerteza tipográfica das edições em que surgiram na época e receber assim, visual e tactilmente, pelo papel amarelecido e as folhas a descoserem-se, a sensação do tempo ido, é disso fazer  o processo de melhor as interiorizar, como se minhas fossem.

Devo a uma estadia em São Pedro de Moel, ditada pelas circunstâncias da vida, a proximidade, primeiro, com a sua "Casa Nau", depois a curiosidade e logo o apreço pela sua escrita poética, que fui folheando na Biblioteca Pública Municipal de Leiria, até me decidir a buscá-la, paciente na expectativa.

Se em São Pedro a presença do lugar, geograficamente enigmático e meteorologicamente incerto, trouxe por si a natural afinidade com o que o Poeta ali escreveu e com o que só ali se me tornou expressão, nessa simbiose de mar e céu, a bruma chuviscosa e o curto areal, a leitura despovoada, dali ausente e dali saudoso, sei que exige espírito e ânimo.

E foi então que o meu amigo Luís Gomes, livreiro alfarrabista, retirado agora em Óbidos, me trouxe o livro de que hoje fica aqui este breve apontamento.

É de um Afonso Lopes Vieira, a estrear-se na novela e com esta sua única obra em prosa a dela desistir, que "Marques, a História de um Perseguido" surge como invulgar exemplo do que poderia chamar-se, a sua vertente anarquista, o que talvez seja mais do que a mera passagem pelo anarquismo, ele que fez a estrada do integralismo e do nacionalismo, tudo mesclado com um anti-salazarismo primário e, nesse ecletismo inconformista se define como intérprete do seu próprio personagem.

E anarquista talvez seja, de facto, palavra imprópria, como o acentuam quantos, com maior rigor, o contextualizam nos epígonos da Literatura russa, de Dostoievski a Tolstoi e com ela a generosidade literária pela dor humana e a redenção estética do mal que a determina.

Claro que o diletantismo flamboyant de que Vieira fez aparência, ele «o esteta de si mesmo», permite-lhe sacudir, como a uma recordação de prevaricação de juventude, não propriamente esta obra mas, outrossim, a sua tradução que em 1904 fizera de um folheto de Pyotr Kropoktine, intitulado "À Gente Nova" e que, em conversa com Aquilino Ribeiro, que militara nas hostes do anarquismo bombista, desqualifica como gesto e que não como conteúdo, com a frase: «Não tenho de me envergonhar. De resto, essa brochura explica-se ainda por uma paixoneta que tive por uma sobrinha de Kropoktine que conheci em Paris. Não me arrastou ela até Londres?»

Há, porém, sempre mais verdade, do que aquela em que acreditamos. E aí o subtítulo desta prosa é, na sua essência, uma centelha da biografia de quem a escreveu. Perseguido, sim, em parte, pela sua vida cívica, por ambos os lados da política em que se aventurou, um integralista contra o Estado Novo, um crente na religiosidade mas nesta a rondar o panteísmo, Afonso Lopes Vieira foi mais perseguido, sim, interiormente pelas suas pulsões estéticas, entre o País lilás e o desterro azul.


Um Tribunal artístico

 


Encontrei, enfim, em alfarrábio, a fonte do que ouvira entre a verdade e a lenda. Estava tudo num dos volumes biográficos que José Hipólito Raposo publicou em 1945 sob o título Folhas do meu Cadastro. Monárquico, integralista, confiaria a esse livro a luta tenaz em que militou contra a República e que lhe custaria a prisão no Forte de São Julião da Barra.

A obra - de que existirá um segundo volume que bem gostaria de encontrar - guarda memórias entre 1911 e 1925. 

A escrita, mau grado a adversidade permanente em que se move a narrativa, pauta-se por uma simbiose entre a exaltação e a ironia. Lê-se sem ter de tomar fôlego.

É ironia pura quanto relata a propósito dos dois processos a que foi sujeito, um por abuso de liberdade de imprensa, a correr termos no Tribunal da Boa Hora, outro, simultâneo, a título de atentado à segurança do Estado, julgado no Tribunal Militar Especial, estacionado em Santa Clara, ambos paradoxalmente sobre os mesmos factos.

Em causa a sua qualidade de director do jornal Monarquia e a confessada autoria de um manifesto contra o regime republicano que publicara na edição do periódico a 13 de Março de 1920 e que fora lançado - em papelinhos amarrotados quais balas simbólicas - a partir das galerias, durante uma sessão da Câmara dos Deputados, por dois modestos apoiantes, um vendedor de jornais e um ajudante de cozinheiro.

Tratava-se, pois, escreve o biografado, de «um crime com duplicação de foro», além de ser «a primeira vez que um jornalista, por simples delito de imprensa, ia responder em conselho de guerra».

Do julgamento reproduzem-se no livro alguns extractos. 

O a propósito que me leva a trazê-lo aqui é o facto de este julgamento ter marcado a estreia - e estou em crer a única intervenção - como advogado do poeta Afonso Lopes Vieira, que assumiu do também advogado Hipólito Raposo a defesa, então com 35 anos de idade.

Ora Lopes Vieira, esteta e poeta já nessa altura consagrado, companheiro de ideias monárquicas e nacionalistas, embora de mais discreta militância, deixaria a sua marca logo precisamente no momento de alegar, e porque se discutia o tema da competência daquele Tribunal Militar. Competência, diga-se, em sentido jurídico, no sentido de traduzir as atribuições que lhe estavam confiadas - e que a defesa enfrentava argumentado que a matéria não integrava o núcleo dos casos que ali se poderiam julgar - mas competência que aqueles juízes fardados interpretavam - ante o rudimentar conhecimento que detinham das coisas do Direito - como ofensa às suas capacidades intelectuais, ou como expressão de incapacidade pessoal. «Um oceano de asneiras», comentaria depois, em carta solidária, um juiz amigo do ali réu.

Precisamente ao ter sido admoestado pelo Presidente do Tribunal, o General Encarnação Ribeiro, para «não se referir, nesta audiência, à competência do Tribunal», Lopes Vieira, sem se atemorizar, antes fazendo do humor arma de arremesso e meio fulminante de defesa de Hipólito Raposo, que sabia já previamente condenado, retorquiu-lhe, com contido sarcasmo que só a uma refinada inteligência seria possível: «Vossa Excelência deixe-me dizer-lhe apenas isto: eu e o meu constituinte temos prazer que esta causa tenha sido trazida aqui. Por um motivo estético, decorativo, pois que este tribunal é muito mais artístico do que a Boa Hora, que deixa muito a desejar».

Três meses de prisão correccional, foi  resultado, cujo desfecho já se prenunciava. Na edição de 13 de Março, dia seguinte ao do lançamento do manifesto, publicara-se na Monarquia em jeito provocatório: «ontem à tarde voaram sobre a cabeça dos vadios que costumam reunir-se na feira-franca de São Bento, algumas folhas de um manifesto assinado e com indicação do local da sua composição e impressão».

Conduzido, sob escolta de um Sargento, ao Ministério da Guerra, onde lhe seria passada a guia de marcha para o cárcere, esse militar de engenharia que dela se encarregou, sugeriu-lhe oportunidade de fuga, revoltado estava ante aquilo a que assistira e que traduziu na exclamação: «é uma vergonha o que esta malta acaba de lhe fazer!».

Mundo pequeno: o sargento chamava-se Raul de Carvalho [Soares], tornar-se-ia actor de nomeada, do Teatro Nacional D. Maria. Participara na revolução que a 5 de Dezembro de 1917 que levou Sidónio Pais ao poder. Lutaria na Flandres. Morreu em 1984.

 



Anarquia sentimental

Parece episódica e diria espúria e para muitos insólita a vertente anarquista de Afonso Lopes Vieira, assumidamente monárquico e próximos dos do Integralismo Lusitano, mas, por registo diverso, virulentamente antisalazarista. 
Foi, de facto, um momento de juventude, que deixaria marcas no seu único livro de ficção , Marques, A História de um Perseguido, que publicou em 1903 e li, numa segunda edição publicada pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda, organizada por Eduardo Cintra Torres.
Foi nesta senda que o poeta traduziu o opúsculo de Pyotr Alexeyevich Kropotkin que no original havia sido publicado em 1880. Impresso no Porto, foi editado pela Livraria Editora Viúva Tavares Cardoso, sita ao Largo de Camões.
Porquê desta sincronia com o anarquismo é tema de há muito pensado, como o ilustra o texto de Cristina Nobre, no qual, citando conversa entre o poeta e Aquilino Ribeiro, coloca na boca deste a pergunta: «também passou pela portela anarquista...?» e na do perguntado uma primeira resposta: «Como toda a gente que se preza. É a forma protoplásmica da generosidade mental.» e, na passada, uma outra: «[...] esta brochura explica-se ainda por uma paixoneta que tive pela sobrinha de Kropoktine que conheci em Paris. Não me arrastou ela até Londres»?.
Em suma, libido e não política, anarquia sentimental, em suma.
Encontrei, enfim, a obra, pela mão do Paulo Domingues, poeta e alfarrabista. Alguém a tinha feito encadernar a negro - cor simbólica - sem título na magra lombada, que mal o suportaria, juntada de breve texto de 32 páginas, nem na capa, como se por segurança de olhos curiosos e de todos eles, os da polícia. Aqui o trago, regressando a este espaço. Li-a. Prosa pobre, mensagem ingénua, clamor por uma consciência social dos mais novos «que os velhos, - os velhos de coração e de espírito , - ponham de parte, pois, esta brochura, para não fatigarem inutilmente os olhos com uma leitura que nada lhes dirá».
Paradoxal circunstância: na chamada segunda capa [afinal o verso da capa] vem anunciado o sucesso na Alemanha de uma peça teatral de Júlio Dantas, A Ceia dos Cardeais. Talvez não tanto a despropósito, não fora o modo como o facto vem anunciado, entre as iguarias deglutidas pelos prelados,  entre os quais um verdadeiro faisão, os arminhos das vestes, o Sèvre que valeria oitocentos marcos.

Triste Charneca

É quase a findar o volume dedicado à Estremadura, Alentejo e Algarve do Guia de Portugal que em 1927 por coordenação de Sant'Anna Dionísio a Biblioteca Nacional editou e a Fundação Gulbenkian permitiu reeditar em 1983 o texto que Afonso Lopes Vieira escreveu sobre S. Pedro de Moel [ali grafado como Muel] 
Texto situado no seu tempo tem, por isso, redobrado valor até pelo contraste que permite. A escrita é contemporânea com a destruição do «caminho velho», edificado entre 1880-1881, em favor de um ordenamento oficial. 
Contristado com os "cortes" impostos por esse ordenamento, Vieira comenta: «[...] teria sido bem natural e humano que o ordenamento, determinado há cerca de 50 anos pelo silvicultor Barros Gomes, se houvesse modificado, por inteligente deliberação ulterior. Assim, a burocracia de Lisboa vai reduzindo uma estrada, que era interessante na Europa, e uma triste charneca».
Típica, é, porém, a razão do seu penar, o tratar-se de «prejudicar uma das nossas raras estradas que deliberadamente olhou aos interesses espirituais da paisagem».

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Foto: Bernardino António Barros Gomes.

Mau jurista, muito menos poeta

Regresso aqui com os versos que Afonso Lopes Vieira dedicou a Coimbra, onde por seis anos andou às voltas com um curso de Direito, concluído pelos mínimos, descontente e rebelde.
O exemplar, encadernado a pano vermelho que me coube - vermelho, afinal, as cores do curso - traz o ex-libris do seu anterior detentor: «pensar nos outros» e o seu nome: Raul de Oliveira.
Há nos versos o morno lirismo típico de quem viveu Coimbra boémia e estudantil e as costumeiras referências ante as quais, a mais não haver, ficaria obra sem destrinça de quantas se publicaram em saudade e recordação. O Mondego, o Choupal, as tricanas, o luar e as serenatas, por ali surgem, em rima por vezes falhada, em métrica que também coxeia.
O que há no pequeno livro de interessante é, porém, o clamor ardoroso de revolta, contra a vida que foi dado viver e contra a vida que se avizinha. 
A primeira vem logo anunciado no primeiro poema, os «dias banaes/que por terem passado é que parecem bem»; a segunda é tema do segundo poema, que na undécima estrofe se proclama: «Escusaes de fingir saudades p'lo Mondego/Sem comedias, parti, levando o rosto enxuto/Não falleis de bohemia e conquistae o emprego».
Estão aqui, por outro lado, as sementes por germinar de uma alma que se afirmaria inconformada com os do seu tempo: «e vós confessareis/que a legendaria capa negra não encobre/aventureiros, mas apenas bachareis».
Dedicado a Alberto Costa [o aqui já referido Pad Zé] e a Emerico de Alpoim, O Meu Adeus, é admissão do desinteresse por aquelas aulas, aquele curso, aqueles livros. Saudade dos antigos, «sem dinheiro, sem Dôr, com musculos - e doudos/Esses que já lá estão inda souberam ser/Rapazes a valer, bons camaradas todos,/Cantavam á viola, estudavam sem ler». Seis anos de Universidade «Dos seis anos que andei os livros sobraçando/- Té ao cabo chegar desta navegação,/E nos bancos da aula o corpo flagellando,/Pouco vi que fallasse a este coração».
Mas já a intervenção cívica irrompia. «O estudante eram um pouco a Patria aventureira/Que ama a mulher, o acaso, e á sorte se confia...», Pátria doente «A Patria deu-nos a mamar um leite doente/Nossa Patria foi tuberculosa Mãe:/Sou como vós degenerado descendente,/De iguais males padeço e sou pôdre també».
Estudante de Direito «bacharel, como toda a gente» [diria] assim se retrataria: «No velho casarão de monastico ar/Eu seis annos gastei da minha vida inquieta/E, se aprumado entrei, sahi a corcovar: Fiquei um mao jurista e muito menos poeta!»



Um alfobre de virtudes

Advogado em Leiria, Vasco da Gama Fernandes deixou um livro de memórias, terminado a 14 de Junho de 1974. São lembranças de vida e de intervenção política, dedicadas ao seareiro Manuel Mendes e entregue a Francisco Lyon de Castro, da Europa-América, para publicação, antes do 25 de Abril.
Tinha lido já uma referência de que nelas havia menção a Afonso Lopes Vieira. Consegui o livro e confirmei que a a menção existia, detalhada e lisonjeira.
São Pedro de Muel - assim grafava - era o local das suas férias e de sua família, na altura mais grave da guerra contra o fascismo». Ali fez amigos, um dos quais, até à morte, o Poeta.
Cito alguns excertos dessa recordação, vindas de alguém que, republicano, democrata e socialista estava longe das ideias políticas daquele que em sua casa o recebia «sempre braços abertos.
Logo este:
«A verdade, porém, é que Afonso Lopes Vieira era um autêntico Homem na total acepção da palavra. Monárquico, não acreditava numa monarquia que não fosse popular, e daí o desentendimento entre o republicano que sou e o realista que ainda defendia o que já era impossível. [...] Foram horas em regimes porque havia coisas mais altas que nos uniam e nos quais o nosso acordo era completo: o desprezo pela ditadura, a aversão por Salazar e seus processos, a comum decisão de trabalhar para a restauração das liberdades públicas, o ódio ao nazi-fascismo e a a todas as formas de tirania».
E este outro:
«Afonso Lopes Vieira era um homem muito justo, sabendo bem reconhecer os méritos dos seus adversários, admirando-os e respeitando-os, e é com emoção que o ouvi falar, com igual respeito, de um Paiva Couceiro ou de um António Sérgio, da poesia de Armindo Rodrigues ou da de Miguel Torga. A justiça era a norma da sua vida e razão teve Fialho de Almeida quando, certo dia, o considerou como um «alfobre de virtudes» as tais virtudes postas à prova quando escondeu em sua casa, da fúrias da polícia, o seu adversário político, essa formosa consciência que foi Raul Proença.»

Animais nossos amigos

Consegui-mo o Paulo Domingues, poeta, editor, alfarrabista, amante de livros. Há nele a singeleza meiga de um Guerra Junqueiro,  no seu arrebatador de inocência «Pela estrada plana, toc, toc, toc,/Guia o jumentinho uma velhinha errante/Como vão ligeiros, ambos a reboque». 
Há em Animais nossos Amigos, de Afonso Lopes Vieira, o o despojamento  e a paz pelo amor, tal São Francisco a quem o livro dedica o poema final, em que uma estrofe, na candura do seu verso é um autêntico manifesto social, quando o Santo se dirige à fera: «Eu sei porque fazes mal,/eu sei o que te consome/tu és tão mau afinal,/tu és mau - porque tens fome»
Vim aqui trazer este momento agora que a noite cresce. O exemplar que me coube tem uma dedicatória: «com um beijo da avó muita amiga, Adília Maria.»
Que infortúnios ou acasos terão atirado este livro para fora do que foi o espólio de livros - poucos, muitos, que importa, este! - daquela neta a quem fora oferecido. Tê-lo aqui, à mercê do que me venha a suceder um dia, a mim e logo a ele, é, pois, esperança de que viverá mais uns anos! «O gato, à sua janela,/ao sol, que brilha fulgindo,/vai dormindo,/vai pensando/ e vai sonhando». Noite tranquila a todos.

Gil Vicente: no breve opúsculo, a revolta!

Talvez se tenha obscurecido a natureza combativa e afrontosa de Afonso Lopes Vieira ante a delicadeza da sua lírica e o requinte do seu trato urbano. E talvez fosse o pequeníssimo opúsculo, que li nesta tarde de cansaço, o esforço a abater-se em preguiça, o local onde menos esperaria ver surgir, em inflamado discurso, essa parte lidadora do seu ser.
Mas, sim, ei-lo lido, vagarosamente, linha a linha, colectânea de duas palestras, a primeira, que dá capa à obra, conferência realizada no Serão Vicentino do Teatro República, a 15 de Janeiro de 1912; a segunda, mais breve, a convite de Júlio Dantas, no Teatro Nacional, quando da récita clássica dos alunos do Conservatório, a 29 de Abril de 1911.
Exaltação de "Mestre Gyl", há no primeiro texto, vincado a fogo, mais do que o retrato do homem que, pelo nascente teatro, fez a áspera censura dos vícios do seu tempo e a amorosa elegia do que são sobejava ainda, resignado embora, no povo que tanto ali exprimiu, há, por voz alheia, aquilo que o autor de Marques, essa personagem dos esconsos do anarquismo, pensava e sentia e pela estética expressava, um Afonso Lopes Vieira feito para o confronto persistente, animoso e pertinaz.
Há também claro, o que se derrama em toda a sua obra, a proclamação da Arte como valor salvífico e de fraternidade, do patriotismo como expressão de amor à terra onde se nasce e à tradição que lhe dá vida, o fascínio do Mar, a devoção ao feminino.
Mas há sobretudo um furor violento contra a tirania e a  hipocrisia, a revolta de um cristão sem Santa Sé, um inconformado com um paraíso perdido no fastio do esquecimento.
Lopes Vieira encontra, assim, em Gil Vicente e consigo próprio se encontra «um pensador da Reforma, que aprendeu com Luthero a sua aversão à Roma industrial e pagan, e a sua audacia de lh'o exprimr claramente. É um christão à moda popular, um christão primitivo que desconfia do Papa e lhe ralha sem temor quando é preciso». E continua, sem peias: «O christianismo de Gil Vicente é poético e puro, e sendo ele o inimigo mais cruel dos frades inúteis e gozadores, é elle tambem quem dirige à Virgem estes versos encantandores».
Seria fácil, seguramente, nesse tempo de anti-clericalismo ter dito quanto ele disse? Seguramente, sim. A República estava aí, fresca ainda, e com ela o jacobinismo e a Carbonária. 
Vieira, era, porém, de uma outra família no plano das convicções. e não o renegou. 
E, por isso, ganha sentido ter visto quanto viu: «No teatro de Gil Vicente perpassa uma sociedade já corrompida, de que as figuras da Barca do Inferno nos dão uma amostra eloquente». 
E não cede ao populismo reinante, demo-liberal, antes fustiga o país «onde o povo não ama ainda a sua terra, pela razão simples de que a não conhece. Gente exilada na sua Pátria, povo genial para derribar, rebelde para construir e conservar [...].» 
E, por isso, acirrado, provoca: «Quando todas as outras coisas se apagaram na memoria incerta dos homens, - seja a fama dos poderosos, sejam as façanhas dos condottierii. - a piquena imagem d'um santo na portada d'uma igreja ou uma simples quadra popular - resistem moços, eternamente...»
Mais mansa, a segunda palestra, mais chegada curiosamente ao advento do 5 de Outubro. Mas no desenrolar do discurso, a propósito do Auto da Feira, e entretendo o auditório com a lembrança do que afirma ser esse «formosissimo vilancico, que é o desabrochar do teatro português, «d'esse ingenuo e tocante fresco de catedral», solta, inesperado troar, este tiro arrasador: «Por ironia do Destino, o menino que o nosso rude e sincero Vaqueiro veio saudar, foi aquelle que, mais tarde, se chamou o rei D. João III, o monstro sombrio, o dragão viscoso e asperrimo que entregou a alma portuguesa às mão assassinas dos jesuitas, e acendeu as lavaredas dos autos de fé».

Ao Soldado Desconhecido


Como todos os seres complexos, Afonso Lopes Vieira resiste a classificações simplistas. Entre as comuns, no que aos da Literatura respeita, há sempre a tentação de situá-los no espectro político das categorias existentes, as dicotómicas. O autor da Em Demanda do Graal não seria excluído desta tendência por causa da qual muitas vezes se desfoca a análise literária em prol da qualificação ideológica.
Falando com um local, vizinho da sua Casa em São Pedro de Moel, considerava-o como um «homem das esquerdas». Para tal terá contribuído o seu envolvimento anarquista na juventude e as lendárias ou reais conspirações em que se envolveu e sobretudo o insurrecto rancor que nutria pela figura e obra de António de Oliveira Salazar.
Para Rodrigues Cavalheiro, que organizou para as Edições Panorama uma colectânea de escritos do poeta, Vieira surge, porém, situado nos parâmetros do nacionalismo, percursor do pensamento do integralismo lusitano. Eis o que encontrei neste seu livro, em leitura ontem iniciada.
Cavalheiro foi historiador, apoiante do salazarismo, depois de ter rompido com o  nacional-sindicalismo de Rolão Preto. Licenciado em ciências histórico-geográficas foi professor do ensino liceal, nos Liceus Camões e Gil Vicente e docente na Escola Naval. A partir de 1932 foi Chefe da Secção de Bibliotecas e do Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa. Foi sócio da Academia Portuguesa de História, Deputado em 1942 e Procurador à Câmara Corporativa a partir de 1961.
Tudo isso, no que ao organizador da antologia se refere, ajuda a aproximar a figura de Afonso Lopes Vieira da linha de pensamento que lhe era cara, considerando-a na «sua admirável obra de doutrinação nacionalista» sobretudo na vertente da «campanha de reaportuguesamento de Portugal, em que teve por companheiros mais íntimos um José Figueiredo e um Raul Lino», defensor dessa «religião de Esperança», a de um «verdadeiro nacionalismo» que «tem de ser universalista, como lusíada e europeu».
O livro, reunindo textos oriundos das suas múltiplas obras, contém um prefácio interessante, do qual respigo este facto interessante que passo a relatar.
Foi em Março de 1921, dias antes de terem sido transladados os restos mortais dos soldados portugueses mortos na 1ª Guerra, uma na França, outro em África. [ver com detalhe aqui]


O Bispo de Leiria, o Marechal Joffre, o Presidente da República António José de Almeida, o General Smith Dorrien e outros oficiais estrangeiros no Mosteiro da Batalha, no Claustro central, junto ao túmulo dos Soldado Desconhecidos da Grande Guerra.

Afonso Lopes Vieira publicaria uma plaquette de quatro páginas com o poema Ao Soldado Desconhecido (morto em França) [quem quiser ler o texto integral, encontra-o aqui], cuja venda reverteria a favor de «um órfão da guerra». 
O poema, em tom pungente abre com o verso «Sem discursos, sem frases,/ sem alexandrinos,/ porque a Piedade que nos fazes/ deshonrá-la-hiam os hinos,/ vem, oh Soldado Português da Guerra/ dormir emfim na tua terra/ de Portugal,/ e que a voz dela te embale numa caricia enorme :/ — Dorme, meu menino, dorme...»
Mas, desgraça do autor, adiante consta esta outra estrofe que foi tida como acinte contra os que haviam mobilizado a Nação para aquele combate que terminou em tragédia para as nossas impreparadas tropas, dizimadas pelos alemães: «[...] vem, oh Soldado Português da Guerra,/ dormir emfim na tua terra,/ e que a tua presença/ espectral,/ a tua imensa/ presença acusadora e aterradora /para quem te exportou como um animal,/ se estenda sobre o céu de Portugal!».
A obra seria apreendida e o autor detido durante umas horas, pois que houve quem no Exército e na política considerasse injurioso o excerto em causa.
O episódio foi detalhadamente estudado por Cristina Nobre numa monografia publicada em 2015 nos Cadernos de Estudos Leirienses [pode ler-se aqui].
O que encontro na colectânea de Rodrigues Cavalheiro? O teor mais detalhado de uma carta sua, publicada pelo Diário de Lisboa, a 28 de Abril desse ano, em que [para além do excerto citado por Cristina Nobre] se contém esta citação do General Gomes da Costa, contida no seu livro A Batalha do Lys [pode ler-se aqui] e carregada da autoridade de ter sido ele o Comandante do Corpo Expedicionário Português:
«Devemos todos curvar-nos cheios de admiração e cheios de respeito diante deste pobre gambúzio que meteram num navio com uma arma às costas, sem lhe dizerem para onde ia; que colocaram numa trincheira diante do Boche sem lhe dizerem por que se batia; que passou meses queimado pelo sol de fogo, enregelado pela neve, atascado em lama, encharcado, tiritando com frio, carregando à baioneta quando o Boche avançava...».

É História, que a reconstrução ideológica da História, finge não ter sucedido. Dia a dia, a verdade, vai, porém, fazendo retornar à praia do conhecimento o que muitos jogaram, por interesse, borda fora.