Afonso Lopes Vieira, desenhado por Jaime Cortesão. Publicado no n.º 4 da 1ª série da revista Águia, de 15 de Janeiro de 1911.
Onde a terra se acaba e o mar começa
E daí, ao estar naquele local privilegiado, a curiosidade, primeiro, logo a vontade de conhecer melhor a sua obra e, como seu efeito, que perdurou, o ir adquirindo e lendo quanto ele escreveu.
Esta sexta-feira chegou-me, vindo de alfarrabista amigo, o seu pueril Auto da Sebenta, farsa em dois quadros, com «prólogo fora do pano», representada na noite de 29 de Abril de 1899. Aqui fica, por isso, este apontamento, que levo a um blog que lhe dedico e leva como nome o seu nome [e está aqui]. Faltava-me entre tanto que já juntei.
Lopes Vieira estudou Direito em Coimbra e terminou a sua frequência com uns sofríveis dez valores. O que foi a boémia e a activa recusa de estudar deixou disso traço em um dos seus bem humorados escritos, os versos que no ano seguinte publicaria sob o título O Meu Adeus, comovida lembrança de despedida e onde ficou este apontamento biográfico [respeito-lhe a grafia]:
«No velho casarão de monástico ar
Eu seus anos gastei da minha vida inquieta;
E, se aprumado entrei, sahi a corcovar;
Fiquei um máo jurista e muito menos poeta!»
Ganhou carta de advogado, o que o habilitou a uma única intervenção no foro, para defender Hipólito Raposo quando este foi julgado no Tribunal Militar de Santa Clara, creio que pelo envolvimento na conspiração monárquica de 1919 e ali condenado a uma pena de prisão no Forte de São Julião da Barra [como já deixei escrito aqui e aqui também, de modo mais encurtado].
Voltando ao Auto de Sebenta, o mesmo foi escrito com ironia dizendo-se «homenagem àquela instituição coimbrã que vós conheceis, que é já quasi uma instituição nacional, e que se chama – a Sebenta».
O tempo da representação deu-lhe sentido e a propósito, pois a peça foi estreada no âmbito da comemoração do “Centenário da Sebenta”, feito que deu brado e meteu carro alegórico e cortejo pelas ruas da cidade do Mondego e postais anedóticos como o que aqui trago, grato pelo que escreveu José Norton no seu blog “pena do que não escrevi” [ver aqui], onde o encontrei e que, com a devida vénia, me permito citar.
Instado a indagar o origem do termo “sebenta”, o poeta Trindade Coelho [1861-1908], que daria em Procurador Régio nos tribunais e até juiz, e escreveu umas monografias jurídicas, entre as quais um estudo sobre recursos penais [ver aqui], para além de obra literária diversa [ver aqui], lançaria problematizando-a, a grave essência problemática da questão: «tratava-se de saber se a sebenta vem do cebo (sebo) ou se o cebo é que vem da sebenta».
Regressando ao Auto, este surpreende, no seu primeiro “quadro”, um pobre estudante coimbrão, aterrado ante a iminência de ir ao acto do seu exame e que pelas três da madrugada clama a sua desolação:
«Três horas! Isto não finda! Inda há tanto que estudar! Faltam dois restos ainda, vou no meio da lição. E falta-me consultar o Código do Japão. Isto é ciência aos potes! Falta-me ver a lei dórica, mais a lei dos hotentotes e o Portugaliae Monumenta Historica.».
E eis que no desfiar da narrativa, convocado pela aflição, ressurge, em espectro, El-Rei D. Dinis, o criador da Universidade e o diálogo passa do respeitoso ao mais brejeiro. E diz o aflito estudante, Euzébio de sua graça, na peça representado por Alberto Costa, «estudante do 4º ano de Direito», afinal o lendário Pad Zé [ver aqui e também aqui e aqui], a propósito de um poeta local, revela:
«Ouvi não dizer não sei quando, que ia no artigo mil, um que estava versejando sobre o código civil».
Ao que o Rei lhe responde:
«Que empresa nova e bizarra! Boa ideia! Bem achado! Fazem-se leis à guitarra, cantam-se artigos ao fado».
O que há de irónico neste excerto é que está aqui, em discreto apontamento, quanto vem retratado no capítulo “O Código Civil, poema lírico”, no livro de memórias de Vicente Pinheiro Lobo Machado de Melo e Almada, 2º Visconde de Pindela, irmão do 1º Conde de Arnoso, como já referi aqui, como tendo sido episódio, ocorrido no quarto do poeta Lopes Vieira, na sua casa aos Palácios Confusos, «onde não houve loucura que não sonhassemos e que não tivesse a sua immediata realisação».
Tratou-se da récita, em verso, a despropósito do Código Civil de 1867 que tivera, a sério, mão literária de Alexandre Herculano, por sobre a prosa jurídica do Visconde de Seabra, seu autor, mas vinha agora, transfigurado, em poética burlesca, pela verve exaltada de Lopes Vieira.
E assim tornados agora risonhos dois de muitos dos seus artigos, ei-los, apetecíveis, porque onde estava:
«Artigo 1º
Só o homem é susceptível de direitos e obrigações. Nisto consiste a sua capacidade jurídica, ou a sua personalidade».
«Artigo 8º
A lei civil não tem carácter retroactivo. »,
conta Pindela, «o poeta [Vieira], pedindo discretamente silencio, ante o grémio dos seus ouvintes, em voz grave e pausada, lia-nos os seguintes artigos:
«Artigo 1º
Isto parece-me incrível
Isto faz-me comichões!
Só o homem é susceptível
De direitos e obrigações.»
«Artigo 8º
Que triste vida na choça
Que vida sem lenitivo
Ai! a lei civil não tem
Effeito retroactivo.»
Ficamos por aqui. Um Bom Domingo e boas leituras, até porque há mais vida para além do Direito e pode haver Direito com mais vida do que muitos, burocratas do mesmo, supõem, embalsamado o seu espírito na hermenêutica positivista a que o sujeitam.
Américo da Silva Amarelhe [1892-1946] um dos mais famosos caricaturistas da época, ilustrador sobretudo nos meios teatrais, tem a sua obra dispersa e vive mais em esquecimento do que em reconhecimento.
O seu traço fino e preciso não se exprime aqui neste tosco que capta do retratado o lado amargo e endurecido que também se pressente a quem ler por dentre a sua diáfana poesia, o desconsolo da solidão.
Trouxe-a aqui, retocada ligeiramente. Talvez nela se reconheça a fisionomia que se nos tornou familiar do poeta de "País Lilás, Desterro Azul".
Por esta altura, data que não consigo reconstituir, pois nem encontro informação quanto à origem da fotografia, professaria ele o anarquismo romântico que se evidencia em "Marques, História de um Desterrado": uma certa altanaria na pose, a farta cabeleira solta, o olhar profundo, ainda não fariam pressentir o rebuscado cuidado e a delicadeza filigrânica da sua escrita.
Ansiava, porém, poder encontrar a primeira edição, não por ter o fetiche das primícias, sim porquanto, há em mim um estranho sentir, o de que, em relação a certas obras, tomá-las na modéstia do papel e na incerteza tipográfica das edições em que surgiram na época e receber assim, visual e tactilmente, pelo papel amarelecido e as folhas a descoserem-se, a sensação do tempo ido, é disso fazer o processo de melhor as interiorizar, como se minhas fossem.
Devo a uma estadia em São Pedro de Moel, ditada pelas circunstâncias da vida, a proximidade, primeiro, com a sua "Casa Nau", depois a curiosidade e logo o apreço pela sua escrita poética, que fui folheando na Biblioteca Pública Municipal de Leiria, até me decidir a buscá-la, paciente na expectativa.
Se em São Pedro a presença do lugar, geograficamente enigmático e meteorologicamente incerto, trouxe por si a natural afinidade com o que o Poeta ali escreveu e com o que só ali se me tornou expressão, nessa simbiose de mar e céu, a bruma chuviscosa e o curto areal, a leitura despovoada, dali ausente e dali saudoso, sei que exige espírito e ânimo.
E foi então que o meu amigo Luís Gomes, livreiro alfarrabista, retirado agora em Óbidos, me trouxe o livro de que hoje fica aqui este breve apontamento.
É de um Afonso Lopes Vieira, a estrear-se na novela e com esta sua única obra em prosa a dela desistir, que "Marques, a História de um Perseguido" surge como invulgar exemplo do que poderia chamar-se, a sua vertente anarquista, o que talvez seja mais do que a mera passagem pelo anarquismo, ele que fez a estrada do integralismo e do nacionalismo, tudo mesclado com um anti-salazarismo primário e, nesse ecletismo inconformista se define como intérprete do seu próprio personagem.
E anarquista talvez seja, de facto, palavra imprópria, como o acentuam quantos, com maior rigor, o contextualizam nos epígonos da Literatura russa, de Dostoievski a Tolstoi e com ela a generosidade literária pela dor humana e a redenção estética do mal que a determina.
Claro que o diletantismo flamboyant de que Vieira fez aparência, ele «o esteta de si mesmo», permite-lhe sacudir, como a uma recordação de prevaricação de juventude, não propriamente esta obra mas, outrossim, a sua tradução que em 1904 fizera de um folheto de Pyotr Kropoktine, intitulado "À Gente Nova" e que, em conversa com Aquilino Ribeiro, que militara nas hostes do anarquismo bombista, desqualifica como gesto e que não como conteúdo, com a frase: «Não tenho de me envergonhar. De resto, essa brochura explica-se ainda por uma paixoneta que tive por uma sobrinha de Kropoktine que conheci em Paris. Não me arrastou ela até Londres?»
Há, porém, sempre mais verdade, do que aquela em que acreditamos. E aí o subtítulo desta prosa é, na sua essência, uma centelha da biografia de quem a escreveu. Perseguido, sim, em parte, pela sua vida cívica, por ambos os lados da política em que se aventurou, um integralista contra o Estado Novo, um crente na religiosidade mas nesta a rondar o panteísmo, Afonso Lopes Vieira foi mais perseguido, sim, interiormente pelas suas pulsões estéticas, entre o País lilás e o desterro azul.
A obra - de que existirá um segundo volume que bem gostaria de encontrar - guarda memórias entre 1911 e 1925.
A escrita, mau grado a adversidade permanente em que se move a narrativa, pauta-se por uma simbiose entre a exaltação e a ironia. Lê-se sem ter de tomar fôlego.
É ironia pura quanto relata a propósito dos dois processos a que foi sujeito, um por abuso de liberdade de imprensa, a correr termos no Tribunal da Boa Hora, outro, simultâneo, a título de atentado à segurança do Estado, julgado no Tribunal Militar Especial, estacionado em Santa Clara, ambos paradoxalmente sobre os mesmos factos.
Em causa a sua qualidade de director do jornal Monarquia e a confessada autoria de um manifesto contra o regime republicano que publicara na edição do periódico a 13 de Março de 1920 e que fora lançado - em papelinhos amarrotados quais balas simbólicas - a partir das galerias, durante uma sessão da Câmara dos Deputados, por dois modestos apoiantes, um vendedor de jornais e um ajudante de cozinheiro.
Tratava-se, pois, escreve o biografado, de «um crime com duplicação de foro», além de ser «a primeira vez que um jornalista, por simples delito de imprensa, ia responder em conselho de guerra».
Do julgamento reproduzem-se no livro alguns extractos.
O a propósito que me leva a trazê-lo aqui é o facto de este julgamento ter marcado a estreia - e estou em crer a única intervenção - como advogado do poeta Afonso Lopes Vieira, que assumiu do também advogado Hipólito Raposo a defesa, então com 35 anos de idade.
Ora Lopes Vieira, esteta e poeta já nessa altura consagrado, companheiro de ideias monárquicas e nacionalistas, embora de mais discreta militância, deixaria a sua marca logo precisamente no momento de alegar, e porque se discutia o tema da competência daquele Tribunal Militar. Competência, diga-se, em sentido jurídico, no sentido de traduzir as atribuições que lhe estavam confiadas - e que a defesa enfrentava argumentado que a matéria não integrava o núcleo dos casos que ali se poderiam julgar - mas competência que aqueles juízes fardados interpretavam - ante o rudimentar conhecimento que detinham das coisas do Direito - como ofensa às suas capacidades intelectuais, ou como expressão de incapacidade pessoal. «Um oceano de asneiras», comentaria depois, em carta solidária, um juiz amigo do ali réu.
Precisamente ao ter sido admoestado pelo Presidente do Tribunal, o General Encarnação Ribeiro, para «não se referir, nesta audiência, à competência do Tribunal», Lopes Vieira, sem se atemorizar, antes fazendo do humor arma de arremesso e meio fulminante de defesa de Hipólito Raposo, que sabia já previamente condenado, retorquiu-lhe, com contido sarcasmo que só a uma refinada inteligência seria possível: «Vossa Excelência deixe-me dizer-lhe apenas isto: eu e o meu constituinte temos prazer que esta causa tenha sido trazida aqui. Por um motivo estético, decorativo, pois que este tribunal é muito mais artístico do que a Boa Hora, que deixa muito a desejar».
Três meses de prisão correccional, foi resultado, cujo desfecho já se prenunciava. Na edição de 13 de Março, dia seguinte ao do lançamento do manifesto, publicara-se na Monarquia em jeito provocatório: «ontem à tarde voaram sobre a cabeça dos vadios que costumam reunir-se na feira-franca de São Bento, algumas folhas de um manifesto assinado e com indicação do local da sua composição e impressão».
Conduzido, sob escolta de um Sargento, ao Ministério da Guerra, onde lhe seria passada a guia de marcha para o cárcere, esse militar de engenharia que dela se encarregou, sugeriu-lhe oportunidade de fuga, revoltado estava ante aquilo a que assistira e que traduziu na exclamação: «é uma vergonha o que esta malta acaba de lhe fazer!».
Mundo pequeno: o sargento chamava-se Raul de Carvalho [Soares], tornar-se-ia actor de nomeada, do Teatro Nacional D. Maria. Participara na revolução que a 5 de Dezembro de 1917 que levou Sidónio Pais ao poder. Lutaria na Flandres. Morreu em 1984.