Obra de Natal para crianças, ilustrado por Raul Lino, editado pela Livraria Ferreira, eis o livro Bartolomeu Marinheiro, escrito por Afonso Lopes Vieira na intenção de o orientar para as crianças.
Feroz, Fernando Pessoa, não pouparia o livro. Assim, sob o título Naufrágio de Bartolomeu, publicou no número inaugural da revista Teatro: Revista de Crítica [Lisboa, 01.031913] uma diatribe agreste contra a obra, não sem deixar, como registo, uma, suponho que sincera homenagem ao seu autor, enfim um desencontro de gerações como o apodou Cristina Nobre. É um texto de agigantada crítica, talvez injusta no efeito, mas legítima na intenção:
«Nenhum livro para crianças deve ser escrito para crianças. Escrever de cousas simples com simplicidade é quanto se exige daquela espécie de adido à pedagogia que o Sr. Lopes Vieira quer ser. Assim, João de Deus não escreveu a «Enjeitadinha» senão com o escrúpulo de ser simples. E porque o assunto era também simples, as crianças compreendem-o. Se quisesse ser infantil, acontecia-lhe isto - seria infantil . O Sr. Lopes Vieira quer escrever para crianças mediante intuição da alma infantil, como uma criança, escrevendo para crianças. Mesmo que se saísse bem disto, não se saía bem disto. Porque as crianças não escrevem. Escrever como uma criança, é tolerável sendo criança, porque o ser criança o torna tolerável. Mas o que uma criança escreve ou não se publica ou se publica para adultos, psicólogos. E que interesse tem para crianças esta baba pedagógica? Que interesse há para adultos nesta tradução para verso do estilo do Sr. Nunes da Mata? Que interesse fica, para psicólogos desta pobreza de senso comum, obediência aos elogios de parvos ou videiros e casta abstenção das voluptuosidades de pensar e criar-arte, do S. Francisco de Assis da Livraria Ferreira?
«Salvo no caso dum génio supremo, com chave para todas as portas da expressão, o querer ser simples dá com o querente na vizinhança de quem quer ser sublime. Este dá consigo em absurdo. Aquele escorrega-se para idiota. É este, ao que parece, o trágico fim cómico de quem foi o autor do «Ar Livre» e de «O Poeta Saudade». Como estes fenómenos de combustão-em-asneira encontrassem uma atmosfera de elogios propícia, a chama aumentou até vir queimar a crítica para fora da indiferença. Esse fenómeno de elogios - esse sim é que era merecedor de uma análise de química psicológica.
«A fama que o Sr. Lopes Vieira tem, ex-ganhou-a dignamente, porque foi com uma obra bela, e por vezes grande que se enfameceu. Foi com moeda de lei que adquiriu o incenso com que se estonteou. Como muitos outros, e em parte pela mesma razão turibular, criou fama e deitou-se a dormir. E visto que estes livros para crianças e parte de outros, recentes, são o seu sono, bem se pode dizer que dorme como uma besta. Mas voltemos, acusadoramente, ao caso. O Sr. Lopes Vieira é um criminoso. É-o por três razões. Está estragando, com o seu gato-por-lebre de simplicidade, o rudimentar senso estético de crianças, que, mesmo que sejam só duas, são classificáveis de inúmeras, ante o horror do crime. - Está tornando ridículos assuntos que conviria tratar com uma decência que a estupidez, mesmo quando involuntária, nunca tem. Pobres cães nossos amigos tinhosos de Lopes Vieira. Pobre Bartolomeu Dias, tão embobecido de pedagogias! - E, por último, para tudo de nocivo ser, o Sr. Lopes Vieira é até antipedagógico, porque quem escreve
«Que era de antes o mar? Um quarto escuro
«Onde os meninos tinham medo de ir
«merece uma inquisição de professores. Educados na estupidez pela leitura das obras infantis do Sr. Lopes Vieira, levados ao antipatriotismo pelo inevitável desdém que um livro como o «Bartolomeu Marinheiro» leva a ter pelo navegador que ali aparece vestido de bebé de Carnaval, cheios de fobias por lhes terem sido metaforizadas na infância cousas como que um quarto escuro é logicamente terrível, os homens de Portugal de amanhã (adoptados escolarmente, como tudo o que dizemos neste artigo leva a crer que sejam, os livros do Sr. Lopes Vieira) terão por Shakespeare o Sr. Júlio Dantas, por Shelley o Sr. Lopes Vieira... e serão espanhóis.
«Porque em que diabo pode vir a dar uma nação de parvos, de antipatriotas e de panofóbicos senão em deixar de ser nação ?»
Cristina Nobre, na investigação para a sua tese de doutoramento sobre a obra do poeta de São Pedro de Moel viria a encontra as emendas autógrafas feitas pelo autor para uma 2ª edição do livro, as quais foram levadas àquela que a Livraria Bertrand editou, em 1955, com «decorações de João Carlos». O leitor mais interessado encontra nas páginas 491-506 do segundo volume desse notável estudo que a Imprensa Nacional publicou em 2005 a transcrição dessas notas.
Mas para que a memória do autor fique reintegrada, a mesma estudiosa cita uma carta, subscrita a 27 de Fevereiro de 1942 por Matilde Simon Rachel Bensaude a partir de Nova Iorque, na qual esta considera que o livro deveria estar em destaque no que fosse uma exposição de livros infantis. Matilde, visita da casa de Lopes Vieira, manteve com ele correspondência e idealizara também a escrita, em parceria com ele, de um livro infantil.