História de um Perseguido

 


Tinha-o, comprado em Leiria, na "Letras & Livros", na segunda edição, organizada e comentada por Cristina Nobre e Eduardo Cintra Torres. Edição essa em que a ortografia foi actualizada e a pontuação adaptada «a normas consensuais contemporâneas», mas em que os estudos dos organizadores ajudaram a ler e a entendê-la, supondo-a na sua original grafia.

Ansiava, porém,  poder encontrar a primeira edição, não por ter o fetiche das primícias, sim porquanto, há em mim um estranho sentir, o de que, em relação a certas obras, tomá-las na modéstia do papel e na incerteza tipográfica das edições em que surgiram na época e receber assim, visual e tactilmente, pelo papel amarelecido e as folhas a descoserem-se, a sensação do tempo ido, é disso fazer  o processo de melhor as interiorizar, como se minhas fossem.

Devo a uma estadia em São Pedro de Moel, ditada pelas circunstâncias da vida, a proximidade, primeiro, com a sua "Casa Nau", depois a curiosidade e logo o apreço pela sua escrita poética, que fui folheando na Biblioteca Pública Municipal de Leiria, até me decidir a buscá-la, paciente na expectativa.

Se em São Pedro a presença do lugar, geograficamente enigmático e meteorologicamente incerto, trouxe por si a natural afinidade com o que o Poeta ali escreveu e com o que só ali se me tornou expressão, nessa simbiose de mar e céu, a bruma chuviscosa e o curto areal, a leitura despovoada, dali ausente e dali saudoso, sei que exige espírito e ânimo.

E foi então que o meu amigo Luís Gomes, livreiro alfarrabista, retirado agora em Óbidos, me trouxe o livro de que hoje fica aqui este breve apontamento.

É de um Afonso Lopes Vieira, a estrear-se na novela e com esta sua única obra em prosa a dela desistir, que "Marques, a História de um Perseguido" surge como invulgar exemplo do que poderia chamar-se, a sua vertente anarquista, o que talvez seja mais do que a mera passagem pelo anarquismo, ele que fez a estrada do integralismo e do nacionalismo, tudo mesclado com um anti-salazarismo primário e, nesse ecletismo inconformista se define como intérprete do seu próprio personagem.

E anarquista talvez seja, de facto, palavra imprópria, como o acentuam quantos, com maior rigor, o contextualizam nos epígonos da Literatura russa, de Dostoievski a Tolstoi e com ela a generosidade literária pela dor humana e a redenção estética do mal que a determina.

Claro que o diletantismo flamboyant de que Vieira fez aparência, ele «o esteta de si mesmo», permite-lhe sacudir, como a uma recordação de prevaricação de juventude, não propriamente esta obra mas, outrossim, a sua tradução que em 1904 fizera de um folheto de Pyotr Kropoktine, intitulado "À Gente Nova" e que, em conversa com Aquilino Ribeiro, que militara nas hostes do anarquismo bombista, desqualifica como gesto e que não como conteúdo, com a frase: «Não tenho de me envergonhar. De resto, essa brochura explica-se ainda por uma paixoneta que tive por uma sobrinha de Kropoktine que conheci em Paris. Não me arrastou ela até Londres?»

Há, porém, sempre mais verdade, do que aquela em que acreditamos. E aí o subtítulo desta prosa é, na sua essência, uma centelha da biografia de quem a escreveu. Perseguido, sim, em parte, pela sua vida cívica, por ambos os lados da política em que se aventurou, um integralista contra o Estado Novo, um crente na religiosidade mas nesta a rondar o panteísmo, Afonso Lopes Vieira foi mais perseguido, sim, interiormente pelas suas pulsões estéticas, entre o País lilás e o desterro azul.