Para além do nefelibata

Ali estava, ontem, na íngreme calçada que é a Rua da Oliveira ao Carmo, na minúscula arca de tesouros bibliográficos, a conferência proferida por Alfredo Gândara, a 7 de Setembro de 1952 na Casa do Poeta em S. Pedro de Moel, editada no ano seguinte em opúsculo pela Comissão Municipal de Turismo da Marinha Grande. 
Trouxe-ma, à pergunta sem esperança «e de Afonso Lopes Vieira?», o guardião desse templo de iniciações que é a Livraria Antiga do Carmo, o Senhor José Ferreira, que há tanto tempo não visitava, e sabe-se lá porque oculto sortilégio, teimei sempre em supor que se chamaria Marques.
Está aqui comigo. Existia, afinal, salvo do pó, aquele folheto. Trago-a à vida, o local onde as palavras ecoaram ali ao fim da breve rua, em noite de Domingo em que chuva irrompe, juntando o céu ao mar.
Obra de panegírico, proferida ante autoridades, é, no entanto, interessante em várias facetas que se me revelaram da vida e obra do autor das Canções do Vento e do Sol
Logo dela a primeira claridade, indo do fim do opúsculo para o princípio, surgiu-me, tirando-a o conferencista da boca do lendário Pad-Zé [Alberto Costa de seu nome], companheiro de quarto em Coimbra nos tempos em que Afonso cursava Direito: a "desconstrução" [irritante termo hoje tão em voga] da imagem do poeta. Fica essa por hoje.
Eis, em longa citação, impossível de cindir: «À sua maneira - maneira sóbria e intelectual - o grande poeta foi estúrdio. É preciso retocar o retrato de Afonso Lopes Vieira, vulgarizado em certas camadas menos cultas - retrato de nefelibata que passou como sombra pela Vida e não viu a Vida. Contra esta caricatura, protesta a sua actividade de poeta cívico e de cidadão consciente - vida cheia de viril coragem e de constante ensinamento: vida de pregação, de vigilância e de inconformismo. Protesta, ainda, a sua inquieta e ansiosa juventude de cerebral e hiperestético, cuja alma profunda e ardente e cujo coração faminto de sonho sofriam as angústias da asfixia, num ambiente rarefeito de Espírito e sobretudo de Estesia, mas que nunca deixou de ser natural e humano, na sujeição às materialidades terrenas.»

Lei em verso e de ouvido: um poeta que ri!

Chegaram vários livros, vindos do meu alfarrabista que já se tornou amigo e não nos conhecemos pessoalmente. E, tirando uma pausa à profissão, o que, miséria, só sucede quando o corpo entra no limiar da exaustão, li este, em dois ímpetos, um sono reparador pelo meio. 
Tão estragado pelo tempo, manchado pela humidade, amarelecido o papel, a ter de manusear com cuidado para que a lombada não se partisse, ou rasgassem as páginas, sendo espesso o papel, mas tão companheiro reconfortante.
E sorri, ri mesmo, tentei ler como se a uma imaginária cidade, numa ansiada janela onde pudesse gritar: «tão bom! que paz e quietude nesta simplicidade risonha, que halo de alegria nesta mundo de notícias nojentas».
Afonso Lopes Vieira cursou Direito em Coimbra. Sem esforço, com mínima aplicação. E na carta-prefácio à obra diz, a jeito de porquê: «Não estudar, em Coimbra, seguramente encontra seus motivos na única parta divina do nosso pobre ser, o sub-consciente: - é a defesa subtil do nosso instinto alerta!».
Já volto a esse texto inaugural em que a Coimbra e seu ensino jurídico são tão fustigados, mas digo, desde já o essencial no que a Vieira respeita: a sua leitura transportou-me para uma rebeldia de espírito, uma graça sulfúrica que não descortinava na lírica delicodoce que é, nas descuidadas selectas literárias, e a sua efígie literária. 
O livro são as memórias de Vicente Pinheiro de Mello [Vicente Pinheiro Lobo Machado de Melo e Almada, de seu nome integral], 2º Visconde de Pindela, irmão do 1º Conde de Arnoso. 


Seria administrador colonial, nessa qualidade Governador de São Tomé e Príncipe, Par do Reino, e ministro plenipotenciário em Haia e Berlim. É em Berlim que encontra, nos seus papéis, este seu caderno de memórias coimbrãs e as editará, no ano de 1909, impressas, em edição de autor na Tipografia A Editora, ao nº 50 da Rua do Conde Barão em Lisboa. Eis [à esquerda, numa foto da época, o palacete seiscentista pertencente à família Almada-Carvalhais, onde era a sede da tipografia]

Um dos capítulos do livro é dedicado a Afonso Lopes Vieira, as referências à sua pessoa, reiteradas. Num desses textos, intitulado "O Codigo Civil, poema lírico", lembra episódio, ocorrido no quarto do Poeta, na sua casa aos Palácios Confusos, «onde não houve loucura que não sonhassemos e que não tivesse a sua immediata realisação». 
Nessa noite, e como me faz sentido que tudo seja noctívago, os sentidos apurados, a mente desperta, Vieira «atirou-nos subitamente com uma idéa que lhe nascera momentos antes - idéa monumental que consistia em passar ao verso nem mais nem menos do que o próprio Codigo Civil em pessoa».
E segue Pindela, em narrativa que, pelo ritmo e pela ironia, transporta o seu leitor para a antecâmara onde o burlesco surgirá: «Era sobretudo o regresso do Verso à sua origem primitiva, quando as Legislações eram rithmadas, para honra das Leis e commodidade dos povos, que assim as decoravam melhor».
E, eis, os dois artigos do Código Civil de 1867, em cuja redacção metera mão Alexandre Herculano, lei das leis do tempo em que as leis se liam e entendiam, trazidas agora às musas galhofeiras pela pena do poeta de São Pedro de Moel.
Para que melhor se entenda, leiam-se os dois artigos glosados, diria gozados, o primeiro na íntegra, o segundo na parte sobre que recaiu a risota poética:

Artigo 1º
Só o homem é susceptível de direitos e obrigações. Nisto consiste a sua capacidade jurídica, ou a sua personalidade».

Artigo 8º
A lei civil não tem carácter retroactivo. 
[..]

E agora, prossegue Pinheiro de Mello, «o poeta, pedindo discretamente silencio, em voz grave e pausada, lia-nos os seguintes artigos:

Artigo 1º

Isto parece-me incrível
Isto faz-me comichões!
Só o homem é susceptível
De direitos e obrigações.

Artigo 8º

Que triste vida na choça
Que vida sem lenitivo
Ai! a lei civil não tem
Effeito retroactivo.

O riso, é como a pólvora, quanto mais se comprime mais estoira. Mas de um fogo-de-artifício se trata neste magnífico livro. Continua o seu autor, fechando em «oh!» a sua descrição: «De todos os assistentes sahiram à uma freneticos appalusos. O poeta, porém, interrompeu-nos, núm gesto largo de desolação: «Infelizmente, meus amigos, nos disse elle, não posso continuar. Ó! decepção tremenda! - E porquê, com mil diabos? gritou o Américo. A razão comtudo era simples: o poeta só conhecia dois unicos artigos - e de ouvido!»
Voltarei ao livro, pelas mesmas razões e do mesmo modo, a Faculdade de Direito de Coimbra e seus Doutores, que irmanou autor a prefaciador, causticada à Eça de Queiroz, o mesmo que queria forrar a parede de seu quarto «com pele de Lente».