Um alfobre de virtudes

Advogado em Leiria, Vasco da Gama Fernandes deixou um livro de memórias, terminado a 14 de Junho de 1974. São lembranças de vida e de intervenção política, dedicadas ao seareiro Manuel Mendes e entregue a Francisco Lyon de Castro, da Europa-América, para publicação, antes do 25 de Abril.
Tinha lido já uma referência de que nelas havia menção a Afonso Lopes Vieira. Consegui o livro e confirmei que a a menção existia, detalhada e lisonjeira.
São Pedro de Muel - assim grafava - era o local das suas férias e de sua família, na altura mais grave da guerra contra o fascismo». Ali fez amigos, um dos quais, até à morte, o Poeta.
Cito alguns excertos dessa recordação, vindas de alguém que, republicano, democrata e socialista estava longe das ideias políticas daquele que em sua casa o recebia «sempre braços abertos.
Logo este:
«A verdade, porém, é que Afonso Lopes Vieira era um autêntico Homem na total acepção da palavra. Monárquico, não acreditava numa monarquia que não fosse popular, e daí o desentendimento entre o republicano que sou e o realista que ainda defendia o que já era impossível. [...] Foram horas em regimes porque havia coisas mais altas que nos uniam e nos quais o nosso acordo era completo: o desprezo pela ditadura, a aversão por Salazar e seus processos, a comum decisão de trabalhar para a restauração das liberdades públicas, o ódio ao nazi-fascismo e a a todas as formas de tirania».
E este outro:
«Afonso Lopes Vieira era um homem muito justo, sabendo bem reconhecer os méritos dos seus adversários, admirando-os e respeitando-os, e é com emoção que o ouvi falar, com igual respeito, de um Paiva Couceiro ou de um António Sérgio, da poesia de Armindo Rodrigues ou da de Miguel Torga. A justiça era a norma da sua vida e razão teve Fialho de Almeida quando, certo dia, o considerou como um «alfobre de virtudes» as tais virtudes postas à prova quando escondeu em sua casa, da fúrias da polícia, o seu adversário político, essa formosa consciência que foi Raul Proença.»

Animais nossos amigos

Consegui-mo o Paulo Domingues, poeta, editor, alfarrabista, amante de livros. Há nele a singeleza meiga de um Guerra Junqueiro,  no seu arrebatador de inocência «Pela estrada plana, toc, toc, toc,/Guia o jumentinho uma velhinha errante/Como vão ligeiros, ambos a reboque». 
Há em Animais nossos Amigos, de Afonso Lopes Vieira, o o despojamento  e a paz pelo amor, tal São Francisco a quem o livro dedica o poema final, em que uma estrofe, na candura do seu verso é um autêntico manifesto social, quando o Santo se dirige à fera: «Eu sei porque fazes mal,/eu sei o que te consome/tu és tão mau afinal,/tu és mau - porque tens fome»
Vim aqui trazer este momento agora que a noite cresce. O exemplar que me coube tem uma dedicatória: «com um beijo da avó muita amiga, Adília Maria.»
Que infortúnios ou acasos terão atirado este livro para fora do que foi o espólio de livros - poucos, muitos, que importa, este! - daquela neta a quem fora oferecido. Tê-lo aqui, à mercê do que me venha a suceder um dia, a mim e logo a ele, é, pois, esperança de que viverá mais uns anos! «O gato, à sua janela,/ao sol, que brilha fulgindo,/vai dormindo,/vai pensando/ e vai sonhando». Noite tranquila a todos.