Um Tribunal artístico

 


Encontrei, enfim, em alfarrábio, a fonte do que ouvira entre a verdade e a lenda. Estava tudo num dos volumes biográficos que José Hipólito Raposo publicou em 1945 sob o título Folhas do meu Cadastro. Monárquico, integralista, confiaria a esse livro a luta tenaz em que militou contra a República e que lhe custaria a prisão no Forte de São Julião da Barra.

A obra - de que existirá um segundo volume que bem gostaria de encontrar - guarda memórias entre 1911 e 1925. 

A escrita, mau grado a adversidade permanente em que se move a narrativa, pauta-se por uma simbiose entre a exaltação e a ironia. Lê-se sem ter de tomar fôlego.

É ironia pura quanto relata a propósito dos dois processos a que foi sujeito, um por abuso de liberdade de imprensa, a correr termos no Tribunal da Boa Hora, outro, simultâneo, a título de atentado à segurança do Estado, julgado no Tribunal Militar Especial, estacionado em Santa Clara, ambos paradoxalmente sobre os mesmos factos.

Em causa a sua qualidade de director do jornal Monarquia e a confessada autoria de um manifesto contra o regime republicano que publicara na edição do periódico a 13 de Março de 1920 e que fora lançado - em papelinhos amarrotados quais balas simbólicas - a partir das galerias, durante uma sessão da Câmara dos Deputados, por dois modestos apoiantes, um vendedor de jornais e um ajudante de cozinheiro.

Tratava-se, pois, escreve o biografado, de «um crime com duplicação de foro», além de ser «a primeira vez que um jornalista, por simples delito de imprensa, ia responder em conselho de guerra».

Do julgamento reproduzem-se no livro alguns extractos. 

O a propósito que me leva a trazê-lo aqui é o facto de este julgamento ter marcado a estreia - e estou em crer a única intervenção - como advogado do poeta Afonso Lopes Vieira, que assumiu do também advogado Hipólito Raposo a defesa, então com 35 anos de idade.

Ora Lopes Vieira, esteta e poeta já nessa altura consagrado, companheiro de ideias monárquicas e nacionalistas, embora de mais discreta militância, deixaria a sua marca logo precisamente no momento de alegar, e porque se discutia o tema da competência daquele Tribunal Militar. Competência, diga-se, em sentido jurídico, no sentido de traduzir as atribuições que lhe estavam confiadas - e que a defesa enfrentava argumentado que a matéria não integrava o núcleo dos casos que ali se poderiam julgar - mas competência que aqueles juízes fardados interpretavam - ante o rudimentar conhecimento que detinham das coisas do Direito - como ofensa às suas capacidades intelectuais, ou como expressão de incapacidade pessoal. «Um oceano de asneiras», comentaria depois, em carta solidária, um juiz amigo do ali réu.

Precisamente ao ter sido admoestado pelo Presidente do Tribunal, o General Encarnação Ribeiro, para «não se referir, nesta audiência, à competência do Tribunal», Lopes Vieira, sem se atemorizar, antes fazendo do humor arma de arremesso e meio fulminante de defesa de Hipólito Raposo, que sabia já previamente condenado, retorquiu-lhe, com contido sarcasmo que só a uma refinada inteligência seria possível: «Vossa Excelência deixe-me dizer-lhe apenas isto: eu e o meu constituinte temos prazer que esta causa tenha sido trazida aqui. Por um motivo estético, decorativo, pois que este tribunal é muito mais artístico do que a Boa Hora, que deixa muito a desejar».

Três meses de prisão correccional, foi  resultado, cujo desfecho já se prenunciava. Na edição de 13 de Março, dia seguinte ao do lançamento do manifesto, publicara-se na Monarquia em jeito provocatório: «ontem à tarde voaram sobre a cabeça dos vadios que costumam reunir-se na feira-franca de São Bento, algumas folhas de um manifesto assinado e com indicação do local da sua composição e impressão».

Conduzido, sob escolta de um Sargento, ao Ministério da Guerra, onde lhe seria passada a guia de marcha para o cárcere, esse militar de engenharia que dela se encarregou, sugeriu-lhe oportunidade de fuga, revoltado estava ante aquilo a que assistira e que traduziu na exclamação: «é uma vergonha o que esta malta acaba de lhe fazer!».

Mundo pequeno: o sargento chamava-se Raul de Carvalho [Soares], tornar-se-ia actor de nomeada, do Teatro Nacional D. Maria. Participara na revolução que a 5 de Dezembro de 1917 que levou Sidónio Pais ao poder. Lutaria na Flandres. Morreu em 1984.