Anarquia sentimental

Parece episódica e diria espúria e para muitos insólita a vertente anarquista de Afonso Lopes Vieira, assumidamente monárquico e próximos dos do Integralismo Lusitano, mas, por registo diverso, virulentamente antisalazarista. 
Foi, de facto, um momento de juventude, que deixaria marcas no seu único livro de ficção , Marques, A História de um Perseguido, que publicou em 1903 e li, numa segunda edição publicada pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda, organizada por Eduardo Cintra Torres.
Foi nesta senda que o poeta traduziu o opúsculo de Pyotr Alexeyevich Kropotkin que no original havia sido publicado em 1880. Impresso no Porto, foi editado pela Livraria Editora Viúva Tavares Cardoso, sita ao Largo de Camões.
Porquê desta sincronia com o anarquismo é tema de há muito pensado, como o ilustra o texto de Cristina Nobre, no qual, citando conversa entre o poeta e Aquilino Ribeiro, coloca na boca deste a pergunta: «também passou pela portela anarquista...?» e na do perguntado uma primeira resposta: «Como toda a gente que se preza. É a forma protoplásmica da generosidade mental.» e, na passada, uma outra: «[...] esta brochura explica-se ainda por uma paixoneta que tive pela sobrinha de Kropoktine que conheci em Paris. Não me arrastou ela até Londres»?.
Em suma, libido e não política, anarquia sentimental, em suma.
Encontrei, enfim, a obra, pela mão do Paulo Domingues, poeta e alfarrabista. Alguém a tinha feito encadernar a negro - cor simbólica - sem título na magra lombada, que mal o suportaria, juntada de breve texto de 32 páginas, nem na capa, como se por segurança de olhos curiosos e de todos eles, os da polícia. Aqui o trago, regressando a este espaço. Li-a. Prosa pobre, mensagem ingénua, clamor por uma consciência social dos mais novos «que os velhos, - os velhos de coração e de espírito , - ponham de parte, pois, esta brochura, para não fatigarem inutilmente os olhos com uma leitura que nada lhes dirá».
Paradoxal circunstância: na chamada segunda capa [afinal o verso da capa] vem anunciado o sucesso na Alemanha de uma peça teatral de Júlio Dantas, A Ceia dos Cardeais. Talvez não tanto a despropósito, não fora o modo como o facto vem anunciado, entre as iguarias deglutidas pelos prelados,  entre os quais um verdadeiro faisão, os arminhos das vestes, o Sèvre que valeria oitocentos marcos.