Porque amanhã é Domingo, aqui fica o que nem sei como inventei hoje tempo para conseguir escrever, moído de prazos, um intervalo no cenho carregado que a profissão traz, fora o fastio.
Razões da vida levaram-me há anos a dividir-me entre Lisboa e São Pedro de Moel e ali viver em casa arrendada, contígua à Casa Nau, a onde viveu o poeta Afonso Lopes Vieira [1878-1946].
Local discreto permitiu-me um tempo de recolhimento, entre a paz do mar por vezes furibundo, oportunidade para flanar pelas arribas e a possibilidade de trabalhar e ler fora dos limites apertados da voragem lisboeta em que o relógio acelera e o espírito se fadiga mesmo quase sem nada fazer.
E daí, ao estar naquele local privilegiado, a curiosidade, primeiro, logo a vontade de conhecer melhor a sua obra e, como seu efeito, que perdurou, o ir adquirindo e lendo quanto ele escreveu.
Esta sexta-feira chegou-me, vindo de alfarrabista amigo, o seu pueril Auto da Sebenta, farsa em dois quadros, com «prólogo fora do pano», representada na noite de 29 de Abril de 1899. Aqui fica, por isso, este apontamento, que levo a um blog que lhe dedico e leva como nome o seu nome [e está aqui]. Faltava-me entre tanto que já juntei.
Lopes Vieira estudou Direito em Coimbra e terminou a sua frequência com uns sofríveis dez valores. O que foi a boémia e a activa recusa de estudar deixou disso traço em um dos seus bem humorados escritos, os versos que no ano seguinte publicaria sob o título O Meu Adeus, comovida lembrança de despedida e onde ficou este apontamento biográfico [respeito-lhe a grafia]:
«No velho casarão de monástico ar
Eu seus anos gastei da minha vida inquieta;
E, se aprumado entrei, sahi a corcovar;
Fiquei um máo jurista e muito menos poeta!»
Ganhou carta de advogado, o que o habilitou a uma única intervenção no foro, para defender Hipólito Raposo quando este foi julgado no Tribunal Militar de Santa Clara, creio que pelo envolvimento na conspiração monárquica de 1919 e ali condenado a uma pena de prisão no Forte de São Julião da Barra [como já deixei escrito aqui e aqui também, de modo mais encurtado].
Voltando ao Auto de Sebenta, o mesmo foi escrito com ironia dizendo-se «homenagem àquela instituição coimbrã que vós conheceis, que é já quasi uma instituição nacional, e que se chama – a Sebenta».
O tempo da representação deu-lhe sentido e a propósito, pois a peça foi estreada no âmbito da comemoração do “Centenário da Sebenta”, feito que deu brado e meteu carro alegórico e cortejo pelas ruas da cidade do Mondego e postais anedóticos como o que aqui trago, grato pelo que escreveu José Norton no seu blog “pena do que não escrevi” [ver aqui], onde o encontrei e que, com a devida vénia, me permito citar.
Instado a indagar o origem do termo “sebenta”, o poeta Trindade Coelho [1861-1908], que daria em Procurador Régio nos tribunais e até juiz, e escreveu umas monografias jurídicas, entre as quais um estudo sobre recursos penais [ver aqui], para além de obra literária diversa [ver aqui], lançaria problematizando-a, a grave essência problemática da questão: «tratava-se de saber se a sebenta vem do cebo (sebo) ou se o cebo é que vem da sebenta».
Regressando ao Auto, este surpreende, no seu primeiro “quadro”, um pobre estudante coimbrão, aterrado ante a iminência de ir ao acto do seu exame e que pelas três da madrugada clama a sua desolação:
«Três horas! Isto não finda! Inda há tanto que estudar! Faltam dois restos ainda, vou no meio da lição. E falta-me consultar o Código do Japão. Isto é ciência aos potes! Falta-me ver a lei dórica, mais a lei dos hotentotes e o Portugaliae Monumenta Historica.».
E eis que no desfiar da narrativa, convocado pela aflição, ressurge, em espectro, El-Rei D. Dinis, o criador da Universidade e o diálogo passa do respeitoso ao mais brejeiro. E diz o aflito estudante, Euzébio de sua graça, na peça representado por Alberto Costa, «estudante do 4º ano de Direito», afinal o lendário Pad Zé [ver aqui e também aqui e aqui], a propósito de um poeta local, revela:
«Ouvi não dizer não sei quando, que ia no artigo mil, um que estava versejando sobre o código civil».
Ao que o Rei lhe responde:
«Que empresa nova e bizarra! Boa ideia! Bem achado! Fazem-se leis à guitarra, cantam-se artigos ao fado».
O que há de irónico neste excerto é que está aqui, em discreto apontamento, quanto vem retratado no capítulo “O Código Civil, poema lírico”, no livro de memórias de Vicente Pinheiro Lobo Machado de Melo e Almada, 2º Visconde de Pindela, irmão do 1º Conde de Arnoso, como já referi aqui, como tendo sido episódio, ocorrido no quarto do poeta Lopes Vieira, na sua casa aos Palácios Confusos, «onde não houve loucura que não sonhassemos e que não tivesse a sua immediata realisação».
Tratou-se da récita, em verso, a despropósito do Código Civil de 1867 que tivera, a sério, mão literária de Alexandre Herculano, por sobre a prosa jurídica do Visconde de Seabra, seu autor, mas vinha agora, transfigurado, em poética burlesca, pela verve exaltada de Lopes Vieira.
E assim tornados agora risonhos dois de muitos dos seus artigos, ei-los, apetecíveis, porque onde estava:
«Artigo 1º
Só o homem é susceptível de direitos e obrigações. Nisto consiste a sua capacidade jurídica, ou a sua personalidade».
«Artigo 8º
A lei civil não tem carácter retroactivo. »,
conta Pindela, «o poeta [Vieira], pedindo discretamente silencio, ante o grémio dos seus ouvintes, em voz grave e pausada, lia-nos os seguintes artigos:
«Artigo 1º
Isto parece-me incrível
Isto faz-me comichões!
Só o homem é susceptível
De direitos e obrigações.»
«Artigo 8º
Que triste vida na choça
Que vida sem lenitivo
Ai! a lei civil não tem
Effeito retroactivo.»
Ficamos por aqui. Um Bom Domingo e boas leituras, até porque há mais vida para além do Direito e pode haver Direito com mais vida do que muitos, burocratas do mesmo, supõem, embalsamado o seu espírito na hermenêutica positivista a que o sujeitam.