Gil Vicente: no breve opúsculo, a revolta!

Talvez se tenha obscurecido a natureza combativa e afrontosa de Afonso Lopes Vieira ante a delicadeza da sua lírica e o requinte do seu trato urbano. E talvez fosse o pequeníssimo opúsculo, que li nesta tarde de cansaço, o esforço a abater-se em preguiça, o local onde menos esperaria ver surgir, em inflamado discurso, essa parte lidadora do seu ser.
Mas, sim, ei-lo lido, vagarosamente, linha a linha, colectânea de duas palestras, a primeira, que dá capa à obra, conferência realizada no Serão Vicentino do Teatro República, a 15 de Janeiro de 1912; a segunda, mais breve, a convite de Júlio Dantas, no Teatro Nacional, quando da récita clássica dos alunos do Conservatório, a 29 de Abril de 1911.
Exaltação de "Mestre Gyl", há no primeiro texto, vincado a fogo, mais do que o retrato do homem que, pelo nascente teatro, fez a áspera censura dos vícios do seu tempo e a amorosa elegia do que são sobejava ainda, resignado embora, no povo que tanto ali exprimiu, há, por voz alheia, aquilo que o autor de Marques, essa personagem dos esconsos do anarquismo, pensava e sentia e pela estética expressava, um Afonso Lopes Vieira feito para o confronto persistente, animoso e pertinaz.
Há também claro, o que se derrama em toda a sua obra, a proclamação da Arte como valor salvífico e de fraternidade, do patriotismo como expressão de amor à terra onde se nasce e à tradição que lhe dá vida, o fascínio do Mar, a devoção ao feminino.
Mas há sobretudo um furor violento contra a tirania e a  hipocrisia, a revolta de um cristão sem Santa Sé, um inconformado com um paraíso perdido no fastio do esquecimento.
Lopes Vieira encontra, assim, em Gil Vicente e consigo próprio se encontra «um pensador da Reforma, que aprendeu com Luthero a sua aversão à Roma industrial e pagan, e a sua audacia de lh'o exprimr claramente. É um christão à moda popular, um christão primitivo que desconfia do Papa e lhe ralha sem temor quando é preciso». E continua, sem peias: «O christianismo de Gil Vicente é poético e puro, e sendo ele o inimigo mais cruel dos frades inúteis e gozadores, é elle tambem quem dirige à Virgem estes versos encantandores».
Seria fácil, seguramente, nesse tempo de anti-clericalismo ter dito quanto ele disse? Seguramente, sim. A República estava aí, fresca ainda, e com ela o jacobinismo e a Carbonária. 
Vieira, era, porém, de uma outra família no plano das convicções. e não o renegou. 
E, por isso, ganha sentido ter visto quanto viu: «No teatro de Gil Vicente perpassa uma sociedade já corrompida, de que as figuras da Barca do Inferno nos dão uma amostra eloquente». 
E não cede ao populismo reinante, demo-liberal, antes fustiga o país «onde o povo não ama ainda a sua terra, pela razão simples de que a não conhece. Gente exilada na sua Pátria, povo genial para derribar, rebelde para construir e conservar [...].» 
E, por isso, acirrado, provoca: «Quando todas as outras coisas se apagaram na memoria incerta dos homens, - seja a fama dos poderosos, sejam as façanhas dos condottierii. - a piquena imagem d'um santo na portada d'uma igreja ou uma simples quadra popular - resistem moços, eternamente...»
Mais mansa, a segunda palestra, mais chegada curiosamente ao advento do 5 de Outubro. Mas no desenrolar do discurso, a propósito do Auto da Feira, e entretendo o auditório com a lembrança do que afirma ser esse «formosissimo vilancico, que é o desabrochar do teatro português, «d'esse ingenuo e tocante fresco de catedral», solta, inesperado troar, este tiro arrasador: «Por ironia do Destino, o menino que o nosso rude e sincero Vaqueiro veio saudar, foi aquelle que, mais tarde, se chamou o rei D. João III, o monstro sombrio, o dragão viscoso e asperrimo que entregou a alma portuguesa às mão assassinas dos jesuitas, e acendeu as lavaredas dos autos de fé».