Ao Soldado Desconhecido


Como todos os seres complexos, Afonso Lopes Vieira resiste a classificações simplistas. Entre as comuns, no que aos da Literatura respeita, há sempre a tentação de situá-los no espectro político das categorias existentes, as dicotómicas. O autor da Em Demanda do Graal não seria excluído desta tendência por causa da qual muitas vezes se desfoca a análise literária em prol da qualificação ideológica.
Falando com um local, vizinho da sua Casa em São Pedro de Moel, considerava-o como um «homem das esquerdas». Para tal terá contribuído o seu envolvimento anarquista na juventude e as lendárias ou reais conspirações em que se envolveu e sobretudo o insurrecto rancor que nutria pela figura e obra de António de Oliveira Salazar.
Para Rodrigues Cavalheiro, que organizou para as Edições Panorama uma colectânea de escritos do poeta, Vieira surge, porém, situado nos parâmetros do nacionalismo, percursor do pensamento do integralismo lusitano. Eis o que encontrei neste seu livro, em leitura ontem iniciada.
Cavalheiro foi historiador, apoiante do salazarismo, depois de ter rompido com o  nacional-sindicalismo de Rolão Preto. Licenciado em ciências histórico-geográficas foi professor do ensino liceal, nos Liceus Camões e Gil Vicente e docente na Escola Naval. A partir de 1932 foi Chefe da Secção de Bibliotecas e do Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa. Foi sócio da Academia Portuguesa de História, Deputado em 1942 e Procurador à Câmara Corporativa a partir de 1961.
Tudo isso, no que ao organizador da antologia se refere, ajuda a aproximar a figura de Afonso Lopes Vieira da linha de pensamento que lhe era cara, considerando-a na «sua admirável obra de doutrinação nacionalista» sobretudo na vertente da «campanha de reaportuguesamento de Portugal, em que teve por companheiros mais íntimos um José Figueiredo e um Raul Lino», defensor dessa «religião de Esperança», a de um «verdadeiro nacionalismo» que «tem de ser universalista, como lusíada e europeu».
O livro, reunindo textos oriundos das suas múltiplas obras, contém um prefácio interessante, do qual respigo este facto interessante que passo a relatar.
Foi em Março de 1921, dias antes de terem sido transladados os restos mortais dos soldados portugueses mortos na 1ª Guerra, uma na França, outro em África. [ver com detalhe aqui]


O Bispo de Leiria, o Marechal Joffre, o Presidente da República António José de Almeida, o General Smith Dorrien e outros oficiais estrangeiros no Mosteiro da Batalha, no Claustro central, junto ao túmulo dos Soldado Desconhecidos da Grande Guerra.

Afonso Lopes Vieira publicaria uma plaquette de quatro páginas com o poema Ao Soldado Desconhecido (morto em França) [quem quiser ler o texto integral, encontra-o aqui], cuja venda reverteria a favor de «um órfão da guerra». 
O poema, em tom pungente abre com o verso «Sem discursos, sem frases,/ sem alexandrinos,/ porque a Piedade que nos fazes/ deshonrá-la-hiam os hinos,/ vem, oh Soldado Português da Guerra/ dormir emfim na tua terra/ de Portugal,/ e que a voz dela te embale numa caricia enorme :/ — Dorme, meu menino, dorme...»
Mas, desgraça do autor, adiante consta esta outra estrofe que foi tida como acinte contra os que haviam mobilizado a Nação para aquele combate que terminou em tragédia para as nossas impreparadas tropas, dizimadas pelos alemães: «[...] vem, oh Soldado Português da Guerra,/ dormir emfim na tua terra,/ e que a tua presença/ espectral,/ a tua imensa/ presença acusadora e aterradora /para quem te exportou como um animal,/ se estenda sobre o céu de Portugal!».
A obra seria apreendida e o autor detido durante umas horas, pois que houve quem no Exército e na política considerasse injurioso o excerto em causa.
O episódio foi detalhadamente estudado por Cristina Nobre numa monografia publicada em 2015 nos Cadernos de Estudos Leirienses [pode ler-se aqui].
O que encontro na colectânea de Rodrigues Cavalheiro? O teor mais detalhado de uma carta sua, publicada pelo Diário de Lisboa, a 28 de Abril desse ano, em que [para além do excerto citado por Cristina Nobre] se contém esta citação do General Gomes da Costa, contida no seu livro A Batalha do Lys [pode ler-se aqui] e carregada da autoridade de ter sido ele o Comandante do Corpo Expedicionário Português:
«Devemos todos curvar-nos cheios de admiração e cheios de respeito diante deste pobre gambúzio que meteram num navio com uma arma às costas, sem lhe dizerem para onde ia; que colocaram numa trincheira diante do Boche sem lhe dizerem por que se batia; que passou meses queimado pelo sol de fogo, enregelado pela neve, atascado em lama, encharcado, tiritando com frio, carregando à baioneta quando o Boche avançava...».

É História, que a reconstrução ideológica da História, finge não ter sucedido. Dia a dia, a verdade, vai, porém, fazendo retornar à praia do conhecimento o que muitos jogaram, por interesse, borda fora.