O alfenim

Prossigo os encontros com a minha estante e cruzo-me desta feita com João Gaspar Simões e a sua autobiografia escrita na forma dos poeta que ele conheceu e ali logo o primeiro com que abre o livro: Afonso Lopes Vieira.
O texto é retrato de um encontro, de uma convivência, de uma leitura. O primeiro, marcante, a segundo a ter dado em amizade, a leitura afinal lisonjeira. Separava-os um fosso de idades, Vieira já sexagenário, Simões pelos trinta.
João Gaspar Simões cruza-se com Afonso Lopes Vieira na «década de trinta», na Baixa, na rua do Ouro, na confluência desta com a Praça D. Pedro IV e deixa aqui o fresco das pinceladas burlescas a pretenderem ser, indeléveis, a «figura com que se cruzou»: «singular silhueta, espécie de dandy, pequenino, de passo saltitante, cujos minúsculos pés uns polainitos, brancos, se não estou em erro, ainda tornavam mais minúsculos». 
E prossegue, desdenhoso: «esse janota de passo saltitante, que a uma primeiro golpe de vista me fez crer estar diante de um Charlot, ao mesmo temo distinto e ridículo, fosse como fosse desajustado ao meio, sorte de alfenim como os alfenins das Guerras do Alecrim e da Manjerona».
Já é severo o vocabulário, mas não sossega. E prossegue em perguntas que albergam afirmações: «Quem era aquele fantasma?», «[...] a quem perguntar de onde viera, para onde ia o piruteante bailarino». 
E, entusiasmado com a palavra "alfenim", que atrás usara, insiste: «era nem mais nem menos esse alfenim, semelhante ser frágil, quase feminino no seu porte e no seu andar, nos seus gestos e nos seus ademanes, era - Afonso Lopes Vieira». 
Chegaria para o leitor ter captado o que teriam visto os olhos do anafado crítico, rotundo e virulento, que de Eça de Queiroz escrevera uma biografia, tingida de psicanálise e de segredos privados, mas, qualquer coisa de fundo teria sido tocado, a nível da sensibilidade, porque não pára tudo quanto pudesse diminuir o ali exposto. E logo «a figura quebradiça e vibrátil, preciosa e afectada», enfim, «a fragilidade andrógina».
Basta, pois! dirá o leitor, e bem. Já se entendeu o choque do esguio ao rotundo.

Em homenagem ao poeta, salva o bilioso crítico a pele, lançando na página do seu retrato: «Teria eu alguma vez conhecido homem tão firme e decidido, tão claro e lúcido, tão impertinente franco, tão corajosamente amigo do seu amigo e inimigo do seu inimigo?» E, numa frase, que tudo resume  afinal, contrasta a «forte personalidade moral encarnada numa frágil presença física».
Venceu, com alívio se lê, o que verdadeiramente vale e honra. 
João Gaspar Simões duas vezes esteve em casa de Lopes Vieira, uma última vez subiu ao Castelo para acompanhar o corpo do poeta morto. «De facto, a única vez que percorri a Casa de São Pedro - assim se chamava a moradia do poeta à ilharga do Pinhal de Leiria - já o autor de Onde a Terra se Acaba e o Mar Começa, principiara a sua rota para além da terra». Pena, de facto, tarde demais.
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Tudo li, tudo retive. Ficou o enigma da palavra "alfenim", aplicado a uma silhueta humana. Entendi esta manhã de Sábado chuvoso em que martelo aqui este apontamento: tratava-se de associar a imagem à alvura de um doce tradicional, de origem árabe e que se expandiu pelos Açores e pelo Brasil. E, para que se compense em doçura o que, em amargo, Simões viu, aqui fica este texto de J. H. Pires Borges, com a devida vénia retirado deste blog aqui:

«No Século VIII, os Árabes invadem e ocupam a Península Ibérica e terá sido nessa altura que introduziram esta gulodice, confeccionada com açúcar ou melaço de cana, designada por “al-fenid” ou “al-fanid” significando a palavra árabe branco ou alvo e derivando em “alfenim” na língua portuguesa e que era um doce muito popular no sul de Portugal.A guloseima “al-fenid” ou “alfenim” vai influenciar a confecção de doçaria na região do Algarve e, também, em Portugal.Em 1404, no tempo de D. João I, inicia-se o cultivo da cana do açúcar no Algarve devido à grande procura do açúcar.Em 1425, o Infante D. Henrique manda introduzir a cana do açúcar na ilha da Madeira. Assim, aumenta a produção de açúcar a nível nacional e permite a variedade e a qualidade da doçaria em Portugal.Em 1465, algumas famílias do Algarve vem povoar a parte oeste da ilha Terceira, ou ilha de Jesus Cristo e, possivelmente, poderão ter introduzido esta arte de confeccionar o açúcar e transformá-lo em “alfenim”. Por exemplo, essa influência mourisca está patente na Ribeira do Mouro na freguesia das Cinco Ribeiras.No século XVI, o Alfenim aparece citado em obras de Gil Vicente e de Jorge Ferreira de Vasconcelos por ser uma gulodice popular em Portugal.Com o descobrimento e colonização do Brasil é introduzida a cana do açúcar onde também, se passa a fabricar o “Alfenim” ou “Alfeninho”.Em 1516 foi enviado ao Papa Leão X a escultura do Sacro Colégio, com todos os cardeais em tamanho natural feitos em alfenim que foi oferta do Terceiro Capitão Donatário do Funchal, D. Simão Gonçalves da Câmara. O culto do Espírito Santo tem um grande incremento a partir do século XII-XIII aquando do “Milagre das Rosas” da Rainha Santa Isabel e a Coroação dos Pobres na Vila de Alenquer iniciando-se a Devoção ao Divino do Espírito Santo - Terceira Pessoa da Santíssima Trindade simbolizado pela Pomba Branca.Mais tarde, o “alfenim” ou “al-fenid” devido á sua brancura, que é subentendida como pureza e purificação, foi assimilado e introduzido no culto religioso cristão. Desde então, o doce “alfenim” foi transformado em peças de arte gastronómicas tais como a Pomba Branca representando o Espírito Santo, e todos os outros símbolos utilizados no ritual de celebração da Festa do Espírito Santo ou dos Santos Padroeiros como a coroa, a rosquilha de pão, os animais e outros motivos decorativos que eram doados à Irmandade do Espírito Santo ou outras e, mais tarde, leiloados revertendo a venda para a organização da festa. No caso de graça obtida, a pessoa encomenda à doceira que confeccione uma peça com a simbologia ou outras formas, em “alfenim”, indicando o peso da peça que pretende, a parte do corpo que beneficiou de uma graça do Divino Espírito Santo: um braço, uma perna, um pé, etc..O “alfenim” surge assim, associado às Festas do Espírito Santo e dos Santos Padroeiros, ofertado em retribuição das graças obtidas».